Críticas

Sonhos de um palhaço
foto de Núbia Abe
Crítica do espetáculo Circo do só êu, de Ésio Magalhães
Autor: Humberto Giancristofaro 
Originalmente publicada no site Questão de Crítica 
O espetáculo foi assistido no II Festival de Teatro de Itajaí, SC

Quando todos os espectadores já estão em seus lugares, um palhaço grita efusivamente da plateia que está ansioso por assistir ao espetáculo que, por sinal, já deveria ter começado. Depois da frustrante informação de que o circo desistiu de vir se apresentar, pois aceitou uma oferta maior de outro produtor, Zabobrim, inconformado, aceita entreter o público. Este é o prólogo do espetáculo Circo do só êu, escrito, dirigido e encenado por Ésio Magalhães.

foto de Núbia Abe
Uma produção do Barracão Teatro de Campinas, este espetáculo faz parte do longo trabalho como palhaço de Ésio, que se apresenta para seu respeitável público no II Festival de Teatro de Itajaí com essa paródia do Cirque Du Soleil.

A apresentação acontece em um palco italiano, mas para conseguir ampliar a interatividade necessária ao seu espetáculo, Zabobrim começa por “armar sua barraca”, como diz, envolvendo toda a plateia com uma fita larga, agregando-a em seu espaço cênico. Esse primeiro artifício descaracteriza de imediato a rigidez de uma sala de teatro/auditório e é o momento que o ator tem para reconhecer seu público e iniciar uma relação franca e direta com ele. Aos poucos o ator vai somando uma série de tiques que se repetem ao longo da peça, construindo um personagem coerente. Por mais que excessivamente caricatos em alguns momentos, os trejeitos do palhaço ganham a plateia nos dez minutos iniciais, antes mesmo de seu primeiro número. Essa agilidade com a pilhéria vem de um artifício praticado pelo palhaço que se diferencia do principal caminho da comédia costumeira: ele não é partidário do escárnio.

A tradição do fazer rir, desde a conceituação de Aristóteles que identifica como diferencial humano o fato dele ser o único dentre os animais que possui a habilidade de rir, carrega a teoria fundamental de que toda a animação causada pela zombaria é fruto de uma insinuação de desprezo. Thomas Hobbes já havia assinalado que a função social do riso é reconhecer o diferente e apontá-lo como ridículo até o constrangimento, a fim de educar e corrigir essa disparidade, reinserindo-o novamente na normalidade social regida pelo identitário. Ésio Magalhães explora um lado nada moralizante da comédia, conseguindo produzir uma sensação menos apreensiva da plateia – ela não teme ser ridicularizada pelo palhaço. Essa outra visão do cômico, tal como Henri Bergson define em seu livro O riso, também tem um caráter educativo, contudo, com o efeito de expor a distinção entre o que é vivo (criativo) e o que é simples automatismo na constituição da sociedade. Ressaltando isso, ele espera que o indivíduo fique livre para investir naquilo que aumente sua potência de agir, de criar, de investir em seus sonhos. Para Bergson a identificação da natureza da absurdidade cômica é como aquela presente nos sonhos. Ou seja, se faz com base na distinção entre a lógica da realidade, à qual corresponde o esforço espiritual que ele denominava “bom senso”, e a lógica da imaginação. O esforço do bom senso é de regular, adaptar e modificar os pensamentos de acordo com os objetos que encontra na realidade. Na lógica da imaginação ocorre o inverso: não é o pensamento que busca se adaptar à realidade, mas é esta que é forçada a se moldar segundo aquele. É o que acontece no número de Zabobrim com sua piolha Jupiara que pensa ser uma pulga e quer demonstrar um salto ornamental. Ninguém pode enxergá-la, assim todas as imagens construídas são imaginárias e provenientes do imaginário daquele palhaço. Ou seja, onde ninguém enxerga nada, um indivíduo enxerga um número espetacular. Eis o absurdo cômico que segue a mesma lógica dos sonhos.

foto de Núbia Abe
Outro elemento explorado nesse circo, que depende da reação rápida do ator diante das interações, é a composição de caricaturas. Elemento seminal do humor, a caricatura não se resume ao exagero aleatório. Ésio constrói caricaturas com base nas reações do público, alargando o potencial dessa troca. A análise da caricatura, tal como é proposta por ele, passa por uma consideração do que é uma fisionomia cômica (entenda-se, de toda expressividade cômica). Para caracterizá-la, podemos voltar, ainda com Bergson, à oposição entre a vida e o automatismo. O filósofo diz ser a fisionomia cômica uma ideia de ações simples e mecânicas. Dado que nenhuma fisionomia (ou ação) é perfeitamente harmônica, qualquer rosto guarda o esboço, a insinuação de uma possível deformação. O bom caricaturista percebe essa “revolta da matéria” por sob as “harmonias superficiais da forma”. O palhaço não inventa nada, apenas continua um movimento natural. A caricatura pode ser vista como a arte do realce de esboços desarmônicos prefigurados na natureza fisionômica. O exagero não é um fim, mas sim um meio de indicar as deformações.

Por fim, a premissa de comicidade vai sendo alcançada quanto mais se imprime o automatismo, a mecanicidade, a rigidez à manifestação de espontaneidade do comportamento humano. Essa é uma leitura possível para entender porque os repetidos tombos ficam cada vez mais engraçados à medida que são repetidos; até que numa outra tentativa o palhaço não cai e olha para plateia como quem diz: “peguei vocês, acharam que eu ia cair de novo, né?” Assim, ele põe às claras o dispositivo simples que tem sua graça por expor um lado mecânico do homem, como se algo vivo pudesse ser produzido industrialmente.
----------------------------------------------

Estética da impotência
foto de Núbia Abe
Crítica da peça É só uma formalidade, do grupo mineiro Quatroloscinco – Teatro do Comum 
Autor: Humberto Giancristofaro 
Originalmente publicada no site Questão de Crítica 

Estamos cansados do homem, nós sofremos do homem.
Nietzsche

Após a reviravolta que sacou a humanidade da Idade das Trevas, o Renascimento formulou uma nova concepção do mundo, sob a qual, aos poucos, a sociedade europeia e suas descendentes foram se estruturando. Logo o Humanismo trouxe a figura do indivíduo e a ideia de uma razão que determina e referencia qualquer realização. O Racionalismo apossou-se do trono divino, vago na modernidade. O homem e seus costumes foram dissecados. Com esses estudos, manuais enciclopédicos puderam ser forjados para auxiliar o caminhar da sociedade. Não obstante, a referência a esse humanismo se tornou compulsória e o comportamento do homem se estruturou como uma fórmula demasiado humana. O grupo Quatroloscinco, procurando desconstruir esse protocolo, levou à cena É só uma formalidade.

Duas histórias paralelas compõem a dramaturgia dessa peça. A primeira, fruto das pesquisas de dramaturgia latino-americana, é baseada no texto Só os babacas morrem de amor, do escritor argentino César Brie, e trata do filho pródigo (Marcos Coletta) que retorna para o enterro do pai e se encontra com o irmão (Assis Benevenuto). A segunda, um diálogo entre marido e mulher (Ítalo Laureano e Rejane Faria) que acabaram de se mudar para uma casa nova, foi completamente fundamentada pelas improvisações durante os ensaios. Ambas incorporam experiências muito pessoais dos integrantes do grupo, até mesmo presentes na origem de alguns objetos cênicos, o que foi revelado por eles no bate-papo após a peça: o vídeo de uma festa de casamento projetado, assim como a garrafa de champanhe que é estourada durante a peça, são do casamento do ator Ítalo com a produtora Maria Mourão; as fotos nos porta-retratos em cima do piano são do primeiro casamento de Rejane e o álbum de família é uma recordação do casamento dos pais de Marcos.

Essa exposição da proveniência de tais objetos ajuda a trazer para este texto as delicadas impressões afetivas formuladas pela estética da peça. Tudo nela é muito íntimo: o trato dos atores que recebem em cena aberta todos os espectadores, conduzindo-os aos seus lugares; a conversa que eles estabelecem com alguns durante o espetáculo e, acentuadamente, o convite aos espectadores para ler um texto, fazer as vezes de uma figura ausente ou trocar de lugar com um deles. Por meio desses e de outros artifícios, cria-se um ambiente de empatia entre todos os presentes. Associada ao fato de a plateia estar disposta em corredor, essa relação assume uma horizontalidade. Com isso, eles podem trabalhar de uma forma mais próxima no projeto de exposição das condições do humano.

As duas histórias se concentram na família e na influência dela na estruturação das formalidades particulares. Na narrativa do filho pródigo, Marcos e Assis estabelecem um código de conduta próximo ao de uma luta e o tencionam com as ciladas dos apegos à estirpe. Com luvas de boxe nas mãos, o treino desenrola-se entre diretos e jebs entrecruzados à descrição dos dilemas da educação sexual sofridos na adolescência do personagem. Parafraseado pelo ritmo de um treinamento de boxe que os atores encenam durante toda a peça, os temas da falibilidade e do adestramento se mesclam. Por um lado há uma desmistificação do projeto de progresso, com o qual o indivíduo supostamente teria sua condição de vida garantida, mas não é isso o que vemos cotidianamente.

Ou seja, o que é posto em questão é uma crença determinista de que, feito todas as premissas sociais ditas corretas, estudar ostensivamente, trabalhar de forma empenhada, pagar impostos em dia e construir uma família são suficientes para se ter boa cabeça, dinheiro no bolso e ordem no lar, contando com o mais importante de tudo, sucesso nas realizações. Esta fórmula, porém, mesmo aos que verdadeiramente a aplicam, constantemente dá sinais de engodo. Como resultado, surgem as frustrações, deixando as pessoas afoitas por descobrir a culpa e o erro, a fim de corrigi-los.

Para compreender esse jogo é mister saber que todo o projeto da formação subjetiva fundada pela modernidade vai, no período contemporâneo, perder seu caráter centralizador. Michel Foucault defende essa ideia ao concluir sua analise histórico-filosófica no livro As palavras e as coisas, dizendo que o homem é uma invenção recente na história de nosso pensamento, cujo fim talvez esteja próximo. Ainda na concepção cartesiana preservou-se a figura de Deus como fonte do saber. A moral derivada disso ditava o que deveria ser feito pelo homem com vistas ao bem maior. Na modernidade kantiana a moral volta-se para o homem, elevando a racionalidade como sua condição de possibilidade. Assim as regras são fundamentadas como alicerce nas relações humanas e uma série de acordos estabelece as bases tanto do saber, quanto do poder. Com o passar dos tempos esses acordos foram ficando velados e dogmatizados. Na peça, toda vez que o marido, personagem de Ítalo, é atingido pela recordação de que as regras são acordos, ele tomba no chão, como se tivesse recebido uma rasteira em suas certezas. Ou ainda, essa condição fica mais nomeada quando dita pelo filho pródigo sobre sua experiência de ausência: “Vi todo o mundo do alto e quis escrever para contar o que eu estava vendo toda pobreza”.

O grupo Quatroloscinco ilustra que perder, assim como ganhar, faz parte do jogo. Alimentar as ilusões de que é possível ter uma vida genial full time esconde a história de fracassos que naturalmente faz parte desse jogo, recalcando-o. Independentemente de ter conseguido conquistar um projeto de vida, a peça suscita a falibilidade do homem e como o fundamental é entender que a relevância recai sobre o jogo, não sobre o resultado. Resta seguir em frente.

Por outro lado, a questão do que se apresenta só como uma formalidade está presente tanto no texto, quando põem em reflexão os condicionamentos do contrato social, quanto na encenação, que procura deslocar certas formalidades do ritual teatral, como mais explicitamente pode ser percebido ao final da peça. Ela termina com os atores desmontando o cenário, limpando o palco com a luz de serviço acesa, se despedindo e dando recados sem deixar o público aplaudir. Na verdade, como isso ainda soa incabível para muitos espectadores, os aplausos acontecem, todavia num lugar diferente do costume, não no final da última cena, mas quando todos já estão indo embora.

foto de Núbia Abe

-------------------------------------------------------  

Expressões que traduzem impressões

foto de Núbia Abe
Crítica da peça Meire Love – uma tragédia lúdica, do Grupo Bagaceira de Teatro, de Fortaleza 
Autor: Humberto Giancristofaro 
Originalmente publicado no site Questão de Crítica

Meire Love – uma tragédia lúdica foi escrita pela dramaturga cearense Suzi Élida e dirigida por ela e Yuri Yamamoto. A peça trata do delicado tema da exploração sexual infantil. A história é sobre Meire, uma menina que, crendo nos búzios, tem fé de que um príncipe encantando estrangeiro vai tirá-la da miséria e levá-la para o exterior. Quando seu plano é descoberto, ela aparece morta. Sua coragem é exemplo para as colegas de rua que passam a discutir sobre as possibilidades que lhes restam, enquanto esmolam e prostituem-se pela orla de um balneário.

O Grupo Bagaceira de Teatro, de Fortaleza, realizou esta peça no II Festival de Teatro de Itajaí, como parte do projeto de desvelar a chaga social que é a prostituição infantil. Ao por em cena três homens de terno para interpretar o papel das crianças, a direção afasta-se de dois tipos de abordagem: a representativa e o discurso panfletário sobre o assunto, em prol da potência metafórica. Esta deve ser operada de forma positiva. Ou seja, valendo-se dela, a arte aufere a possibilidade de tocar o espectador naquilo que o força a pensar. Contrariamente, quando a metáfora é articulada no nível do discurso, é utilizada como artifício retórico para minimizar a situação, afastando o público do que se quer tratar.

O primeiro recurso, não-mimético, vem à tona pelas características da encenação dos atores Rafael Martins, Rogério Mesquita e Yuri Yamamoto. Eles permanecem sentados durante toda a peça em bancos sobre um tablado, com as mãos nos joelhos, cada um sob um foco de luz. A dramatização é construída exclusivamente pelas expressões faciais, pequenas inclinações do tronco para frente e para trás e pela expressão vocal que se desenha a partir da mescla da musicalidade do texto com os sotaques e a fala de rua, carregada de gírias e dialetos, como nos versos iniciais: “acunha calunga/ já é manhã!/ Bora, Bambina arigó/ que é quase agora!/ O mar não tá pra peixe/ mas meu love não demora”.

Por apresentarem, ao invés de reproduzirem os trejeitos das meninas, constroem uma relação franca com o espectador, dado que um primeiro artifício que a mente dispõe para formular essas imagens é o de lembrar o que já foi visto em outras ocasiões. Esta lembrança traz à tona a proximidade que qualquer um pode ter dessa situação. A incidência da prostituição infantil, por mais que seja tratada de forma velada socialmente, não tem nada de escondida. É cotidiano ver meninas na mesma situação andando pelas ruas das cidades e é fácil lembrar-se disso. Assim, a presença delas se afirma num nível mais íntimo, com as nuances que estão guardadas na memória de cada um. Deste modo, as cenas contam com a força de certa realidade, justamente por não lançar mão da representação. No entanto, um artifício decorre do figurino para ativar essa lembrança, por baixo dos ternos, cada ator usa um bustiê de cor néon, bem apertado, que pela falta de peito fica desengonçado, assim como acontece com as meninas de rua, impúberes. Essa simples peça de roupa é uma pontada, que é como se dissesse: “vocês sabem do que nós estamos falando”. Não é à toa que a plateia gargalhou nesse momento (talvez de nervoso).

O artifício estético de inflar sacos plásticos durante a encenação alude uma série de significados. Ao friccionarem as mãos nesses balões, os atores produzem sons de diferentes intensidades de acordo com as emoções que estão expressando – carinho, birra ou raiva são cadenciados por esses ruídos. O ato de encher esses sacos implica numa metáfora paradoxal. Em alguns pontos, ajudam a entender que o sonho dessas meninas é conseguir alguém que as beije na boca, símbolo de amor verdadeiro para elas. Mas também lembram o uso da cola de sapateiro que alucina suas mentes, amenizando a realidade em que vivem, criando uma realidade própria, na qual a capacidade de sonhar só é possível pelo entorpecimento, ou resulta dele. Nesses sacos elas sopram seus sonhos e os soltam para formar, ao final da peça, um mar de balões no proscênio.

O segundo artifício estilístico determina uma posição política. O texto da peça não é um discurso panfletário que glosa sobre os infortúnios da pedofilia e da prostituição, talvez porque, ao fazer isso, seria ineficaz, já que o discurso de repulsa à situação já está construído. No campo retórico, há uma cadeia causal que responsabiliza e justifica os motivos da existência de tal aberração social, mas que pouco alcança a realidade do problema. A peça, por sua vez, expõe como seria o dia a dia dessas meninas e alcança o público de outra forma que não pela conscientização do problema, mas por uma corporificação do problema, tocando individualmente, sem dar margem à delegação de responsabilidade a uma instituição encarregada. O corpo de cada espectador sente e reage à questão (ao sair da peça, a forma como se intelectualiza o problema após ter sido exposto a ele, às vezes para dissimulá-lo novamente, é um segundo momento que não cabe neste texto). A força que dá materialidade às impressões da peça é seu recurso metafórico.

Por esse artifício, Meire Love articula-se no distanciamento da generalização do problema. Cada menina tem suas dificuldades, suas preocupações e seus sonhos característicos. A peça não aposta na retratação de uma estrutura geral formada a partir de fragmentos escolhidos arbitrariamente, supondo que estes dão conta da realidade para formular uma doxa. No nível metafórico, as possibilidades de agenciamentos das ideias são mais livres. A relação se dá entre o corpo da peça e o corpo do espectador numa fruição. O que é corroído por esse sistema é a relação de vítima e carrasco que o discurso articula. Torna-se perceptível uma dimensão trágica da vida, para a qual se faz necessária uma ação, o que produz uma nova forma de se relacionar com o problema. Assim, a peça é capaz de estabelecer uma relação entre universos heterogêneos. 

foto de Núbia Abe

-----------------------------------------------------

Folhetim jovem ao estilo japonês

foto de Núbia Abe
Os quadrinhos japoneses são levados ao teatro em espetáculo jovem da companhia paulista Zero Zero.

Por Lucianno Maza
Itajaí

O termo mangá se refere às populares histórias em quadrinhos japonesas, parte integrante da infância e juventude não só de jovens orientais, como, hoje, também ocidentais. Esse material, normalmente, tem como temas heróis e monstros míticos, terror e jornada heroica juvenil e rende outros produtos artísticos, como os animes - versão animada dessas histórias para a televisão, o cinema ou videogame. 

O Caderno da Morte” de Tsugumi Ōba e Takeshi Obata é originalmente uma série de mangás, posteriormente transformada em vários outros produtos, como animés. Conta a história de um jovem que encontra o caderno de capa preta de um deus da morte onde, ao escrever o nome de alguém, consegue matar essa pessoa. Inicialmente o jovem usa o caderno para livrar o mundo do mal matando apenas criminosos, mas logo isso sai de controle e ele passa a usá-lo em benefício próprio e entra num jogo de perseguição com o incógnito detetive obstinado em desvendar os misteriosos assassinatos que aterrorizam o país. 

Temas da juventude
A obra fantástica do oriente surge nessa história como um folhetim juvenil. Maniqueísta, mocinhos e vilões são bem delineados e mesmo o protagonista passa de um polo ao outro sem humanização maior. Ainda sobre o personagem principal, é bastante previsível sua trajetória heroica e falha trágica. O fardo surge logo no início da trajetória, quando o jovem diz ao pai que mataria quem fizesse algum mal a ele e, no final, é quem lhe executa o mal. Outra personagem folhetinesca é a jovem apaixonada, apresentada de forma machista como uma tola cuja única motivação é a paixão adolescente fatal.

A dramaturgia de Bruno Garcia consegue condensar o farto conteúdo em um espetáculo de pouco menos que duas horas de duração, com problemas apenas próximo ao final, quando o ritmo acelera um pouco demais. Se por um lado, citações a personalidades populares brasileiras causam ruídos, vale lembrar que nos mangás os autores também brincam com essas referências a televisão japonesa, por exemplo. Na direção, Alice K. consegue imprimir a velocidade narrativa dos quadrinhos japoneses, trabalhando os quadros fragmentados em diferentes espaços e com poucos recursos, numa condução de pouca criatividade, mas alinhada ao universo da cena. 

‘Live action’ teatral
Não é tarefa desprezível a transposição de personagens tão pitorescos para a ação cênica, mantendo suas características de escrita, sem recorrer a uma naturalização dos mesmos. Nesse sentido, Thais Brandeburgo está irrepreensível como a garota apaixonada, decodificando os elementos do exagero e erotismo incutidos nas jovens personagens femininas de mangá. São tons, expressões chorosas, gritos e pulos típicos dessa linguagem e que Brandeburgo consegue transpor para sua interpretação vivaz. Igor Amanajás também tem destaque pelo vigor físico que empresta a seu jovem e estranho detetive, enquanto Bruno Garcia se apresenta com carisma como o demônio engraçado. Rudson Marcello perde em sua interpretação algo imposta da correção do pai policial. Já Chico Lima tem desempenho insuficiente do jovem protagonista, carecendo de força dramática e consistência para dar maior verossimilhança ao jovem que passa de herói a vilão. 

A cenografia de Laura Di Marc tem grave problema na escolha de materiais, pois distorce as projeções de André Menezes, atrapalhando, inclusive, o entendimento da história - como é o caso quando as páginas do caderno da morte são projetadas e o conjunto da textura das telas com a fonte utilizada torna a leitura impossível. O figurino de Marina Baeder, Patrícia Brito e Lívia de Paula é funcional, enquanto a iluminação de Eduardo Albergaria atende modestamente as necessidades de recorte e clima.


----------------------------------

Simpatia em espetáculo divertido

foto de Núbia Abe
Rio de Janeiro marcou presença com espetáculo infantil que agrada também aos adultos nostálgicos das antigas brincadeiras

Por Lucianno Maza
Itajaí

Trava-língua é uma divertida brincadeira popular na cultura brasileira. Nesses tempos onde as brincadeiras lúdicas foram trocadas por videogames e computadores, “A Aranha Arranha a Jarra e a Jarra Arranha o Trava-Língua”, da Cia. Pop de Teatro Clássico, é uma verdadeira ode a infância criativa, onde a própria criança é seu brinquedo e usa sua voz para recriar a realidade e subverter a própria linguagem humana para, assim, aprender a mesma em todas suas possibilidades mais divertidas, estranhas e difíceis.

O espetáculo é composto por quadros educativos, onde a música tem grande importância ao redesenhar os modos comuns de fala, como é o caso do abecedário. Mimicas e adivinhações, também têm vez. Interagindo delicadamente com o público, são apresentadas situações simples, compreendidas por crianças de menor idade - principais espectadores - e que despertam também a simpatia e nostalgia dos adultos.

Jogos de Português
A dramaturgia de autoria de Demétrio Nicolau parte das brincadeiras de trava-língua para fazer uma bem humorada jornada por nosso idioma e suas idiossincrasias. Da dificuldade de falar a palavra ‘crocodilo’, que percorre todo o espetáculo, a uma versão da ‘língua do pê’, o texto final confirma um apurado trabalho de pesquisa de jogos de fala brasileiros.

Como diretor, Nicolau trabalha sobre a linguagem, a transpondo para a cena com grande inteligência. Experimentações vocais a partir da Língua Portuguesa dão o tom de sua proposta que também utiliza como recurso a extensão do corpo no espaço, que expressiona esses jogos de voz. Para tanto, outras brincadeiras eternas do repertório infantil, hoje relegadas, surgem, como bolas, cordas e bambolês. É interessante notar como o diretor consegue equilibrar um ritmo atrativo para despertar a atenção infantil com um tempo de falas e movimentos lapidados, permitindo que as passagens sejam comunicadas para as crianças com clareza.

Coloridas
As atrizes Cecília Ripoll e Aline Sampim, em total sintonia com a proposta de comunicação para crianças, executam com segurança todo o jogo estabelecido vocal e corporalmente. Sobretudo, o trabalho corporal excepcional das duas para o desenho de movimento criado por Nara Keiserman impressiona. Já na equipe técnica, o destaque é Teca Fichinski com um figurino bem cuidado e muito colorido, perfeito para o encantamento dos pequenos. Colabora para o ótimo resultado estético a maquiagem de Mona Magalhães. O cenário, assinado pelo grupo, e a iluminação do diretor atendem a montagem.


---------------------------------------

Instantes afetivos

foto de Núbia Abe
Crítica da peça Patética da Cia. Ilustríssimos Senhores
Autor: Humberto Giancristofaro

Patética é uma peça escrita por João Ribeiro Chaves Neto, por ocasião do fim dos dias de seu cunhado, o jornalista Vladimir Herzog. A estrutura narrativa é uma paráfrase sobre as intempéries que a família Herzog enfrentou para se afastar das perseguições do regime fascista na Itália e da ditadura no Brasil. O autor escolheu um caminho poético para contar sua história e continuar resistindo à opressão. A peça, por mais que tenha ganhado em primeiro lugar no concurso de dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro de 1977, foi proibida pelo regime militar de receber o prêmio e de ser encenada. A força deste espetáculo, porém, não é apenas um mérito de seu martírio, ela é recheada de pungência teatral, o que a torna uma valiosa expressão estética do teatro brasileiro.

A Cia. Ilustríssimos Senhores resolveu montar este texto para o II Festival de Teatro Toni Cunha de Itajaí com uma nova ponderação das atitudes particulares. Um percurso que os atores tiveram que enfrentar foi de como trazer esse texto sem que sua historicidade o datasse. Pois, por mais que, vergonhosamente, ainda não conseguimos acabar com a ditadura – ela continua em patentes menos explícitas – ao usar um grito de resistência já anestesiado pelos donos do poder, a companhia corria o risco de dizer o que já foi dito. Diferente disso, esta montagem assinala uma atualização nessa insurgência. A chave da direção de Rafael Orsi de Melo foi repensar o lugar de onde o elenco se manifesta. Desta feita, o espaço topográfico das ideias formula um ambiente para que os atores tomem consciência de suas posturas, assim eles podem adotar uma concepção artística cheia de expressividade. Esse é o segredo intempestivo: fazer existir, ao invés de julgar o passado. Eles não estão lá representando personagens da história, estão expressando seus afetos puros.

A fórmula que os atores procuram erigir para a peça é de que ela não dependa da mensagem para alcançar o público, ela deve se comunicar por uma expressividade estética direta. Boa parte desses signos é emitida pelos olhares dos atores. Otávio Barwinski olha nos olhos dos espectadores e toma a fala de seu personagem Glauco (representado Herzog) como sua. Nesse ponto, não é a mensagem o que importa – se não seria uma peça moralizante – mas o esforço dos atores em oferecer uma experiência ao seu público. O que eles produzem é um acontecimento, no sentido de resgatar a potência da efemeridade do teatro. Patética é uma redescoberta do valor do instante. Ela é um instante em que o teatro acontece de forma benfazeja, por meio de seus elementos pessoais, entretanto, técnicos. 

O cenário bem resolvido tornou possível jogar com os dois planos narrativos da peça, tanto da última apresentação do Circo Albuquerque, quanto da representação da vida de Herzog, de forma a mesclar essas duas histórias num espaço coexistente e, transferindo de um para o outro, as intensidades ora melancólicas ora preocupantes. A presença da coxia em cena faz primeiramente referência ao ambiente circense, porém, guarda uma potência mais profunda de abrir o jogo ao espectador, de mostrar que quem está lá no palco são pessoas, com suas implicações e necessidades como qualquer um. Mesmo quando não estão se trocando, ficam sentados olhando as cenas, por vezes muito fortes, mas não ficam impassíveis, é possível notar as impressões que eles têm sobre sua própria peça. Isso reforça a leitura de que os atores presentificam as forças do passado em impressões verdadeiras e animam no público uma revolta pelo que quer que esteja acontecendo agora. A peça não é uma ode à justiça pelo passado, antes, é um tapa com luva de pelica pelo momento presente.


--------------------------------

Pequenos encantamentos

O teatro lambe-lambe, uma das linguagens marcantes da produção artística de Itajaí está presente em montagem da Cia. Andante

Por Lucianno Maza
Itajaí

O teatro lambe-lambe é uma linguagem cênica que teve como percursores no Brasil duas artistas nordestinas, mas hoje é também muito popular no sul do país. Cidades como Itajaí, onde o teatro de animação é bastante presente, têm tido contato continuamente com esse tipo de espetáculo minúsculo, feito com bonecos bem pequenos, dentro das antigas caixas dos fotógrafos lambe-lambe. Com peças de alguns minutos, apresentadas para uma pessoa de cada vez, evoca a ideia de confissão compartilhada pelo artista para o espectador na efemeridade de que aquele momento jamais se repetirá igual para o próximo espectador. 

A experiência de assistir a um tipo de espetáculo como esse, pelo buraco da caixa, se revela muito diferente de outras visualizações de obras de arte. A recriação do mundo em escala mínima se torna espaço infinito para o olhar cujo campo de visão é totalmente preenchido pela cena feita dentro da caixa. Diferente do teatro de palco, onde o espaço da ficção é bem delimitado e é possível ver seus limites com o espaço real - as bordas do palco, as paredes do edifício, as poltronas e outras pessoas -, o teatro lambe-lambe se torna sensorialmente um mergulho dentro da história apresentada e que toma toda caixa.

Mistérios
Nesse formato, cada ator cria de forma total e independente seu mini-espectáculo, concebendo da história à cenografia interna da caixa. “Espia Só”, da Cia. Andante, de Itajaí, Santa Catarina, é uma grande chance para conhecer essa recriação do teatro em miniatura.

O espetáculo, criado para ser apresentado em espaços públicos, sobretudo em ruas, usa a temática do acampamento cigano para contextualizar tematicamente a intervenção. É como se esse outro povo, o dos atores, como os ciganos, fosse forasteiro trazendo em suas tendas os mistérios e belezas das artes desconhecidas aos habitantes daquela terra.

Com direção geral de Jô Fornari, o espetáculo aponta uma consistente consciência da linguagem e o interesse em pesquisa-la e experimentá-la em diferentes contextos e possibilidades cênicas.

Três pérolas diferentes
No onírico e narrativo “Maria do Cais”, a inspiração é o mito umbandista homônimo, da pomba-gira que trabalha na beira do mar ou perto das embarcações. A música Cais do Corpo, de Paulo Freire, estabelece uma relação narrativa com as imagens produzidas. Quanto às soluções cênicas, a representação do marinheiro e da personagem mítica em fiapos cria um interessante movimento, especialmente quando um entra no outro sensualmente. Jô Fornari manipula os bonecos objetos com delicadeza e cria um clima de fantasia. 

O humor é a tônica de “A Iluminação”, que reproduz um espaço mais tradicional, com direito a abertura e fechamento de cortinas (no caso, biombos japoneses). A elevação espiritual de um discípulo relapso, para surpresa de seu mestre zen reflete a ideia budista que a iluminação pode surgir na imperfeição. Dessa vez, os bonecos seguem o clima nipônico em dobraduras de origami. Com sons onomatopeicos, as poucas ações feitas por Laércio Amaral, quando surgem, provocam graça e simpatia.

Já o angustiante “Baldio” tem como tema um homem vagando numa espécie de aterro sanitário no qual resume sua cidade, buscando o que há dentre os detritos. Ao som de ventos ou mares assustadores, a revelação do que o homem descobre sob o lixo é aterradora. Com apáticos rostos talhados em madeira, os bonecos são manipulados por Sandra Knoll que dispensa a luva preta - que se funde ao espaço - e veste luvas recortadas como os de uma catadora, fazendo uma interseção do corpo externo (a manipuladora) na criação da realidade interna da caixa, potencializando ainda mais a carga dramática.

As sonoplastias de Casa de Orates, Fabio Kanelo e Fernando Knoll dão o tom correto às três cenas. As caixas de teatro lambe-lambe estão dispostas em belíssima cenografia de Roberto Gorgati, uma tenda estilizada que remete aos povos ciganos e ao colorido circense, criando um cuidadoso ambiente de detalhes. Os figurinos de Daniel Olivetto têm o mesmo esmero e beleza.


----------------------------------

Voo livre
foto de Núbia Abe
Crítica de Aerostato de Charles Augusto
Autor: Humberto Giancristofaro

A proposta de intervenção de Charles Augusto, utilizando recursos da palhaceria, propunha-se a entreter por meio da busca por atenção. Muito atencioso na concepção de seu personagem, faltou, no entanto, uma estruturação da idéia da própria intervenção. O referido ator demonstra uma boa habilidade de encenação e presença, esvaziadas, porém, por não conseguir alcançar seu público. Quando a proposta de um ator depende da interatividade, há que se conquistá-la antes de confiar na complacência da platéia.

O trabalho começa com a chegada do palhaço ao hall do Teatro Municipal de Itajaí, entre saudações e abraços ele estabelece um primeiro contato já exagerado. Daí em diante a insistência em brincadeiras interativas ao invés de identificar o público com seu trabalho, serviu para causar um clima de constrangimento.

Se bem que, toda a dedicação do ator transparece na naturalidade com que ele se apresenta. Talvez, boa parte do resultado das suas ações tenha se perdido pela falta de um público alvo certo, poucas crianças que se divertem com dadaísmos estavam presentes. Exposto a uma faixa etária adulta, acostumados com finalidades para as ações, os gracejos foram desperdiçados.

Sendo assim, o cuidado na elaboração de números melhores, bem como na desenvoltura do palhaço, poderiam tornar a apresentação Aeróstato numa experiência verdadeiramente tocante. O ator tem potencial para tanto.


-----------------------------------

Ode à arte

foto de Núbia Abe

Critica da peça Rounin do Coletivo Terceira Margem
Autor: Humberto Giancristofaro

A apresentação Rounin é um híbrido de artes cênicas. Formalmente, dialoga com a realidade do locus teatral e procura aproveitar-se do conceito de intervenção e interação. A metáfora de um samurai é usada para invocar os desafios que podem vir à tona quando as portas da reflexão sensível são abertas. O espetáculo aconteceu do lado de fora do Teatro municipal de Itajaí, usando sua grande parede lateral como fundo de cena. 

No primeiro momento, o artista convoca o imaginário da plateia a participar da construção das sensações da peça por meio de um longo ritual de vestimenta de roupas características de um samurai. Junto com uma projeção do seu duplo no paredão, inicia-se uma performance de estatuísmo, na qual os movimentos do samurai são acionados pelo depósito de uma moeda por alguém da plateia. Com esse recurso, embora repetitivo, fica estabelecida uma relação peculiar com a plateia. Entende-se que a presença do público é fundamental para a performance, diferente das impressões tradicionais que se tem dentro de uma sala de espetáculos com a plateia no escuro. É de extrema importância esse despertar do público que a cena contemporânea de teatro evoca, afinal, a plateia é uma parte do acontecimento teatral, é um elemento que comunga com o cenário, figurino, luz, atores etc... Emancipar-se é uma jornada estética pela qual o espectador está passando no tempo presente. Nisso, Rounin tem um grande mérito.

Outro elemento lúdico que alavanca o trabalho do ator-criador Leandro De Maman é seu diálogo com as intervenções site specific. Além da reflexão do lugar do teatro como descrito acima, a relação deste com a cidade surge pelo artifício da apresentação utilizar uma parede de um prédio em meio a um espaço público que é a rua. A peça continua com a projeção de um segundo personagem monstruoso na referida parede e com a interação desse com o ator. Independente da trama, este mecanismo aponta para a importância da presença da arte na cidade, porém, principalmente fora das galerias. A vitalidade da arte é invocada para o meio da rua, para o acesso público, para a vida cotidiana da cidade.

Numa excelente comunicação entre forma e conteúdo, o enredo da performance se relaciona com essas escolhas. Trata-se de um anti-herói, um comum como todos que lutam contra seus fantasmas comuns, erra como todos erram e sofre com seus erros de uma forma bem humana. Este personagem não é um mágico personagem de teatro com uma vida fantástica e bela, este samurai é um qualquer, ou melhor, é qualquer um de nós. O Coletivo Terceira Margem relembra que a verdadeira arte é viver, ao mesmo tempo em que repassa a arte como acessível a todo público.


-------------------------------

Revoluções Marinhas

foto de Núbia Abe

Crítica da peça A Mar Aberto do Coletivo Artísticos Atores à Deriva
Autor: Humberto Giancristofaro

A Mar Aberto foi o primeiro trabalho do Coletivo Artístico Atores à Deriva feito em 2008 na cidade de Natal. Conta a história de um velho capitão pescador que se apaixona por um jovem mancebo. Apesar da primeira temática que salta aos olhos referir-se a lida com as incompreensões acerca da sexualidade, há uma acentuação possível quanto à ontologia dos desejos em geral. A dramaturgia assinada pelo diretor Henrique Fontes tenciona a personalidade endurecida de um velho lobo do mar com a descoberta de novas impressões sensíveis. Conturbado por suas paixões, Hermínio (Doc Câmara) narra sua história a Seu José Tarrafeiro: do embrulho no estomago quando avista pela primeira vez o novo tripulante de sua traineira, ao momento desesperador da inevitável separação. 

A encenação intercala os momentos narrativos com flashbacks da história contada. Por meio desse artifício podemos notar que o embaraço do capitão nasce do conflito entre seus paradigmas. De um lado ele segue o meio convencional de interpretar seus afetos, do outro ele sofre de um desejo incondicional que foge a tudo que ele conhece. Não é suficiente a justificativa encontrada em suas crenças para a origem dessas sensações – ele culpa o tinhoso por sua volúpia – por isso ele embarca numa viagem interior em busca da fonte dos desejos. Com essa intenção a trama assume um caráter semelhante ao do romance de formação. O personagem evolui no decorrer da peça produzindo uma consciência de algo que ele não sabia. Essa construção vai demandar um jogo magistral do elenco para transmitir tais sensações, a fim de produzir na plateia afecções semelhantes.

O primeiro artifício para tanto provêm do ambiente cênico. Um emaranhado de cordas grossas e placas de isopor prestam referência a um atracadouro. Associado ao figurino de trapos e ao visagismo, todo o imaginário de histórias de pescador veem à tona, auxiliando o espectador a compactuar com essa identidade. O segundo recurso toma forma pelo desenrolar da peça expondo um desenho sonoro de Danúbio Gomes, cuidadosamente trabalhado. Este é composto tanto pela métrica do texto, quanto por efeitos sonoros especiais, embora de uma simplicidade impar, como uma chuva de quilicas e lacres de latinhas que produzem a melodia de uma tempestade em alto mar. 

foto de Núbia Abe
Em suma, esse espetáculo lida com signos sensíveis inerentes ao homem e que tem força de transcender uma moral. O resultado é uma transformação do personagem em algo para além da sua realidade, as decisões de Hermínio de não reconstruir sua barca após o naufrágio e de se reportar ao Seu José Tarrafeiro para aprender a profissão de fazer tarrafas, atualiza sua condição de pescador, sem perder o contato com o mar, mas mantendo-se prudentemente à distância.


------------------------------------------

Máquina de caçar rinocerontes

foto de Núbia Abe

Critica da peça Dois amores e um bicho da Cia Exprimentus Teatrais
Autor: Humberto Giancristofaro

A peça Dois amores e um bicho da Cia Experimentus é uma montagem convencional do texto do venezuelano Gustavo Ott. Um convite às idiossincrasias da vida privada. Não haveria interesse algum em assistir os problemas domésticos de uma família, se estes não fossem reveladores de uma situação que está engasgada na garganta da sociedade. É um ato de coragem os atores Jô Fornari, Marcelo F. de Souza, Sandra Knoll e do diretor Daniel Olivetto mostrarem em cena a brutalidade daquilo que convencionamos chamar de normalidade. 

Conseguindo criar um ambiente coerente com o texto, os personagens dessa família sui generes, para suportarem conviver harmonicamente, precisam pôr em esquecimento os equívocos do passado. Ou melhor, precisam reformulá-los. As lembranças podem ser manuseadas para que as impressões construídas sobre elas definam-se de acordo com as volições vigentes. Camadas e mais camadas de lembranças vão se ajambrando na ilusão de fundar uma personalidade sólida e socialmente aceitável. Por nutrir esse sonho de ser normal, qualquer ruído de diferença é afinado. A primeira consequência desse arrolhamento é o estabelecimento de preconceitos e, consequentemente, em rompantes devastadores.

A figura paterna abobalhada, muito bem desenhada por Marcelo, é a expressão perfeita dessa psicologia. Tendo sido levado a escolher suas verdades, vê a verdade dos outros como desafiadoras e, por isso, dignas de serem destruídas. Quando sua realidade é fragilizada por uma ameaça, o único caminho é o confronto direto, a eliminação do diferente. No latim: Homo, diferente; fobia, aversão. Aplicado ao gênero, ao étnico e, mais danoso do que tudo, aos pontos de vista, esse preconceito corrói por dentro qualquer tentativa de sociabilização saudável. 

A forma como Sandra imprime essa tensão no personagem da mãe, faz de sua ótima atuação algo que incomoda o espectador por despertar nele a lembrança de que a normalidade é escorregadia. Também de forma bem concebida, Jô Fornari no papel da filha é um elemento chave para a trama. Com seu incessante questionamento é ela que entrega tudo de errado que está acontecendo, porém de uma forma naif. 

Aos poucos, a peça vai levantando o tapete para que o público aprecie seus preconceitos. Tudo isso só foi possível pelas excelentes escolhas que a direção tomou para construir um espaço acolhedor onde os segredos rondam e podem vir à tona. O cenário de Roberto Gorgati e o figurino de Bárbara Biscaro se completam no lugar de apontar para o cotidiano e usual como as máscaras da loucura em que vive a torpeza do ser humano. Longe de assinalar uma solução, a peça se realiza por sublinhar que “rinocerontes não são unicórnios”: não conhecendo um rinoceronte, os homens do passado o reconheciam como unicórnios – mesmo sabendo que estes são bestas lendárias, mas preferíveis a uma realidade desconhecida. O diferente não precisa ser encoberto apenas para que sua existência se justifique.


--------------------------------------------

Visão contida em encenação correta

foto de Núbia Abe


Porto Cênico, grupo da cidade de Itajaí, mostra sua versão para texto curto do inglês Harold Pinter (1930-2008), autor Prêmio Nobel em 2005.
Por Lucianno Maza
Itajaí

A escrita de Harold Pinter permanece como uma das mais interessantes da dramaturgia britânica. Em suas obras, o autor trabalhou, como nenhum outro, a suspenção. Encarcerando pessoas numa conversa domesticada, mas instável, seus textos são pontuados por inevitáveis silêncios, numa estrutura de linguagem que ilumina sentidos de forma indireta e permite entrever os jogos de poder envolvidos nas situações colocadas em cena. Diferente do Teatro do Absurdo - que partem de metáforas para grandes questões sociais e políticas - ao qual estruturalmente se assemelham, seus textos são sobre as banalidades de relações decompostas moralmente. Com organização de falas, tempos, lacunas e descompassos, seu formato peculiar gerou até um adjetivo próprio na Língua Inglesa: pinteresque. 

Nas chamadas “peças de memória”, o autor trabalhou sobre a lembrança mutável do passado. Em terreno arenoso, os personagens fazem percursos não lineares pela memória de suas vidas, enfrentando o outro que porta uma visão contrária do mesmo momento. Nesse segmento da obra de Pinter, sua linguagem não apenas é responsável pela estrutura formal, como se torna o próprio sentido de raciocínio da história. A peça curta “Noite” (1969), encenada pelo grupo Porto Cênico de Itajaí (SC), permite entrar em contato com a linguagem de Pinter de forma breve. Aqui, um casal maduro recorda sobre o início de sua relação; fragmentos de encontros na juventude, o princípio do casamento e sentimentos atuais ocultados. Homem e mulher recordam não das mesmas coisas, não do mesmo jeito das mesmas coisas. As experiências que compartilharam são percebidas por cada um de uma forma, e é impossível estabelecer a memória correta. Não há uma realidade, mas versões dela. A tentativa de encontrar o passado, tal qual ele foi de fato, é frustrada; o passado, enquanto tempo, moveu-se em direções diferentes pelo espaço.

Uma questão de opção
A direção de Pépe Sedrez opta por um clima de contenção austera e traz para primeiro plano o relacionamento do casal, ante ao desenho complexo dos caminhos da memória - esse sim tema central da história. Se, por um lado, Sedrez não avança na linguagem de Pinter, por outro, executa uma boa encenação com elegante correção. Já quanto a separar homens e mulheres dos dois lados da plateia, o diretor parece querer mostrar o abismo que separa gêneros, mas a ideia não se relaciona intelectualmente com a cena: ambos os sexos têm exatamente as mesmas informações cênicas. Alguma interação entre essa divisão e o conteúdo cênico seria benéfica à idéia.

Os bons atores Roberto Morauer e Valéria de Oliveira atendem corretamente a proposta do diretor com presenças bastante intensas, sendo que ele se destaca com maior segurança e preparo vocal. A cenografia assinada pelo diretor e o elenco é bela, e ao envolvê-la em tecido translúcido estabelece o ambiente claustrofóbico da ação e a exteriorização do olhar do público. A iluminação de Sedrez ajuda a criar o clima soturno, assim como os figurinos, de responsabilidade do elenco. A trilha sonora de André Ricardo de Souza segue a ideia de romantismo contida no texto e o enfoque na memória afetiva.


-------------------------------

Dois bons atores em um trabalho não tão bom


A Sua Cia. de Teatro, formada por dupla de atores de Itajaí, apresenta espetáculo de humor com esquetes variados voltados à educação do público infanto-juvenil.
Por Lucianno Maza
Itajaí

O teatro-escola é uma linha que dialoga mais com a educação do que com a própria arte cênica, pois não se pretende obra artística, mas elemento periférico no processo de formação de crianças e jovens em idade escolar. Comprometidos com esse caráter formador, porém, os espetáculos, em geral, não possuem a consistência pedagógica que seria necessária para a comunicação eficiente com suas plateias e consequente conscientização. Em “Papo Reto”, da Sua Cia. de Teatro, espetáculo forjado nesse formato apresentado na mostra profissional local, as temerosas expectativas nesse sentido se confirmam.

No espetáculo de Marcelo Marquetti e Leandro Magalhães, temos uma sequência de esquetes sobre temas que dialogam com o universo do jovem hoje. Há desde a representação do comportamento dos motoristas no trânsito, até uma pretensa passagem sobre bullying. Outros quadros fogem completamente à temática educativa, como sátiras de um jogador de futebol mais preocupado com seus interesses comerciais ou uma dupla de homens-bomba. Antes do início propriamente dito, um dos autores-atores vai à frente apresentar o trabalho e, nessa oportunidade, esclarece a intenção por trás dele, deixando claro que o mesmo não concorda necessariamente com o que é mostrado ali, mas sim que esta exposição é para que se veja a realidade e os espectadores percebam como ela é errada.

Discutindo responsabilidade
É certo que jovens espectadores têm compreensão superior à estimativa de alguns, como os responsáveis por esse trabalho defendem. Porém, isso não justifica qualquer falta de responsabilidade quanto aos caminhos a serem escolhidos para abordar um tema (que pode ser qualquer um) para pessoas em processo de desenvolvimento psicológico e ideológico, construindo ainda suas visões de mundo.

Mesmo dentro da ideia de educação pela percepção invertida do que é apresentado, algumas cenas acabam ridicularizando quem é vítima de bullying sem perceber. É inadmissível que surja um personagem afetado cuja única missão é fazer o público rir debochadamente de sua suposta condição sexual e manifestação física e verbal de sua identidade. Reafirmando estereótipo e humor baixo em cima dele, tal cena acaba passando a ideia inaceitável de que a diferença sexual seja objeto de escárnio ou qualquer outro tipo de graça. Imaginemos, por exemplo, que uma turma de jovens em formação, já com visão da homossexualidade viciada por programas de humor popular na televisão e pela cultura machista, ao ter em sua companhia um colega afetado - também em processo de formação de sua identidade ainda confusa - repita nele o mesmo riso escarnecedor provocado por tal cena. A homofobia pode acabar então perpetuada, ao invés de rebatida.

Já no último quadro, quando dois árabes se preparam para uma missão terrorista e falam dos americanos - alvos do homem-bomba - os autores repisam uma série de clichês cômicos a respeito de ambos os povos, reforçando uma vilania infantil por parte dos árabes. Em todo caso, um dos quadros mais sem graça, tem como agravante a irresponsabilidade de fazer humor rasteiro sobre um assunto bastante específico que engloba complexas questões sociais, políticas e religiosas e reduzido, em geral, à mera animosidade.

Portátil
Responsável pela direção, Magalhães concebe o espetáculo para comunicar ao máximo com seu público, abrindo inclusive demasiadas concessões para o humor fácil, como no uso de músicas conhecidas da plateia - momento onde o público mais interage.

Com economia de recursos para atender a demanda de transporte e adaptação que o teatro-escola possui. Assim, resolve as cenas com extrema simplicidade e sem espessar algum tipo de linguagem cênica. O resultado acaba mal acabado, carecendo de maior apuro inclusive no desenho espacial. A dupla, que fica solta na maior parte do tempo, é prejudicada pela falta de segurança formal. Mesmo a cena do cobrador de ônibus - onde maior liberdade se justifica, pois a interação com o público é o objetivo, como num show de humor - precisa de maior vigor em sua condução. Quanto aos artifícios utilizados ao longo dos esquetes, o melhor é o das tapadeiras recortadas que, na cena dos bebês, os atores encaixam seus rostos e assumem a falsidade teatral.

Desperdício de talentos
Os autores do espetáculo, Marquetti e Magalhães, em cena, surpreendem com inquestionável talento. São dois bons atores humoristas com bom entendimento dos tempos de comédia. Versáteis o suficiente para desenvolver os diversos tipos que criaram, permitem que imaginemos uma capacidade interpretativa desperdiçada na superficialidade das situações e diálogos do atual espetáculo. Certamente, em dramaturgia melhor desenvolvida, ambos entreteriam a plateia infantil e também adulta; potencial para tanto os dois têm.

Os figurinos do diretor são bastante simples, com poucos elementos, funcionando à caracterização social de cada personagem. A iluminação de Marquetti é insuficiente para criar algum clima pretendido e prejudicado, também, pelas luzes da plateia que permanecem acesas - resquício de apresentações autônomas em espaços alternativos de escolas e similares. Quanto ao cenário de Edson Wesller este, na verdade, possui apenas dois banquinhos e um terceiro, invertido, onde fica apoiado o aparelho de som operado pelos intérpretes.


------------------------------------------

'Bailaram' no palco, mas que sigam em frente

foto de Núbia Abe

Sucesso do gaúcho Júlio Conte, panfleto dramatúrgico sobre a ditadura militar ganha nova montagem por uma escola de atores da cidade de Itajaí, Santa Catarina.

Por Lucianno Maza
Itajaí

No Rio Grande do Sul, bailar na curva quer dizer perder o rumo. É como se o verbo bailar significasse derrapar pra fora da pista. É o que acontece com um grupo de amigos; um deles bailou na curva da História. São jovens que cresceram juntos ao longo dos anos de Governo militar que, a partir de determinado momento, passa a lhes assombrar as vidas. Ao longo das décadas, os setes se separam, seguindo seus rumos traçados pelo momento político do país, e se reencontram como jovens universitários e trabalhadores independentes, quando olham para seus passados e se lembram do amigo ausente, um “desaparecido” da ditadura.

Essa é a história de “Bailei Na Curva” de Júlio Conte, que fora um marco da dramaturgia do Rio Grande do Sul nos anos 1980 - escrito em 1982 e encenado profissionalmente no ano seguinte. Ainda que datado e de qualidade hoje superada, é encenado por vários cursos de teatro por conta de seu número de personagens que contempla grandes turmas, como é o caso da Anchieta Arte Cênica de Itajaí que apresentou na mostra profissional local seu exercício de conclusão de curso.

Apesar de tratar de tema necessário, esse pedaço obscuro da História brasileira, tão importante para a compreensão da constituição de nossa sociedade até os dias de hoje e suas posturas sociais e políticas, o texto envelheceu mal e tornou-se uma espécie de panfleto de ideias presas a uma época. Falta à obra algum tipo de ruptura poética que poderia ser compensada por uma solidez do realismo em cenas bem esquematizadas e diálogos consistentes, o que não acontece. Mesmo como manifesto ideológico, a obra hoje é insípida, sem traços de raiva ou paixão que agitem a posição passiva do espectador dessa realidade.

Os melhores segmentos do texto são os da infância e do início da adolescência, quando os personagens ainda não foram totalmente afetados pela situação política do país e, consequentemente, o autor não foca na temática histórica e concentra-se em contar a jornada do grupo de amigos e tudo que lhes implica o despertar para a vida adulta. Com humor exteriorizado banal, as cenas cômicas que se passam durante o período da puberdade são consideravelmente superiores às dramáticas da segunda metade que, não raro, resvalam em pieguice, como é o caso do discurso final da personagem jornalista - estereótipo da justiceira - que mistura revolta com ideologia política e uma tentativa de poesia bastante frágil.

Encenação modesta
É difícil de compreender a opção artística por encenar essa obra sem que haja alguma contribuição relevante, uma nova visão para um texto tão conhecido. Valentim Schmoeler, educador de interpretação e, como tal, merecedor de todo respeito por seu trabalho, acaba concebendo uma direção sem frescor ao lado de Ana Claudia Wessler, seguindo uma receita de mise-en-scène. A dupla segue receita antiga de encenação correta e reverencia demais o texto, e reproduz, inclusive, a estética da primeira montagem profissional gaúcha que utilizara apenas cadeiras em cena (aqui substituídas por bancos).

Nesse sentido, surgem marcações objetivas demais e pouco atraentes, com problemas no desenho cênico, como é o caso quando um personagem fala com seu interlocutor sem olhar para trás, permanecendo de costas para ele, como se fosse necessário manter a ultrapassada ideia de frontalidade para o público do teatro. Momentos que permitiriam uma fuga maior da linha realista como o número final com a canção-tema do espetáculo, “Horizontes”, de Flávio Bicca Rocha - por si só destituída de maior interesse -, acabam ingênuos em sua formalidade.

Entre os atores, destacam-se aqueles que têm personagens com maiores possibilidades e tiram proveito delas. Diego Miranda Silva, Nathara Heloise Vieira, Tatiane Jacobs e Vinícius Belle imprimem intensidade na graça de suas crianças, mesmo com os clichês de composição, e lidam com certa segurança ao desenhar melhor o arco dramático da trajetória dos protagonistas, especialmente as duas atrizes supracitadas.

Compõem ainda o conjunto a codiretora e Adriano Magalhães Machado, Agnaldo Wessler, Andressa de Assis Lebrão Romanholi, Camille Aline Vieira, Carlos Roberto Farias Júnior, Cristian Cardoso Ribeiro, Cristiana Bertolette Braga, Eduardo Pereira Lira, Felipe Luciano Laurêncio de Souza, Flávia Cittadin Marcos, Guilherme Rebelo, Jackson de Brito Luiz, Laura Osório Laidens, Marcel Yago Bolda Langaro, Maria Tereza Zimmermann, Mariana de Souza Feitosa, Mauro Sérgio Santos Filho, Mayara Kellermann de Azambuja, Mônica Torinelli Nunes, Patrick Cancelier, Pietra Paola Garcia, Sandro Candido Ribeiro, Tais Cittadin Guerreiro e Victor Zaguini.

Carta aos jovens atores
Impossível não se comover ao ver tantos jovens despertando para a arte teatral, imbuídos de paixão para representar seus personagens, sejam eles protagonistas ou participantes de apoio. São atores iniciantes que tiveram pouco mais que a intuição e observação superficial para construir figuras que pertencem a uma época que seus intérpretes não viveram e, pior, provavelmente tiveram pouco contato durante sua educação, já que a História do Brasil, sobretudo o período abordado, é insuficientemente ensinada nas salas de aula do país.

É desejável agora, que aqueles que encaram o teatro como profissão, formem-se desde já como atores de seu tempo e aproveitem todo empenho e disposição juvenis para ambicionar novas percepções e formas do fazer artístico, provocando-se e aos outros maiores ousadias no campo das linguagens. O estudo teórico de pensadores da cena e interpretação, a leitura de dramaturgia contemporânea e a pesquisa por montagens experimentais - hoje facilmente acessíveis - devem acompanhar cotidianamente suas práticas. O ser-teatral deve pensar “fora da caixa”, fora daquilo que é perpetuado e estabelecido - com reproduções sem questionamentos - lançando-se ao risco.

Sem comprometer
Acompanhando a produção da encenação desse exercício, a equipe técnica não compromete. O chamado cenário de Agnaldo Wessler se limita a bancos e a iluminação de Rafael Reis é razoável na maior parte do tempo. Melhor é o figurino correto de Camille Vieira e Nathara Vieira, com alguns achados de peças da moda da época.


---------------------------------------------

Silêncio, no hay charla.

foto de Núbia Abe

Crítica da peça Flashes da Vida
Autor: Humberto Giancristofaro

A Cia Mutua, na figura de seu mímico Guilherme Peixoto, exibiu o espetáculo Flashes da Vida no dia 16 de agosto em Itajaí. Vindo de uma longa tradição de circo o ator é também seu próprio diretor e autor de seus números. A estrutura cênica partiu de movimentos clássicos da pantomima para criar um ambiente de entretenimento. Preocupado em fazer as pessoas rirem, o espetáculo utiliza uma linguagem simples com tiradas rápidas na forma de seis esquetes.

A mímica é uma maneira de designar o nome genérico de uma arte, que tem suas origens nas raízes do teatro grego, fortemente ligado à educação – é associada a uma das musas, Polímnia, que educou Apolo por meio da mimese. Este é o termo que se refere à cópia e é justamente isso que o mímico busca em sua atuação: mimetizar o mundo através de uma linguagem gestual. Pode-se fazer com essa técnica todos os gêneros, a comédia, porém, é a atmosfera mais profícua a ela.

Para além de copiar gestualmente os objetos, a fim de que eles pareçam que estão em cena, Guilherme Peixoto usa uma camada subjetiva da mímica – é o caso da cena em que seu chapéu fica preso em um ponto suspenso no ar sem que o ator consiga move-lo. As leis da física são postas em xeque para ajudar a tornar o mundo do palco um lugar mágico, onde essas leis não valem tanto e onde o nonsense pode acontecer para exaltar habilidades impossíveis; chegar ao buraco de golfe antes da bolinha arremessada, por exemplo.

Outro elemento técnico que vale ressaltar nesse trabalho é a preocupação com a iluminação, assinada também pelo mímico. As luzes ajudam a demarcar as áreas e distinguir ambientes para a cena, é ela que define o espaço do carro; do campo de golfe; do dentro e fora de uma casa. Especificamente neste esquete da casa, em que o personagem está desesperadamente apertado para ir ao banheiro, a luz é a chave para criar toda a tensão da cena. Percebendo que a porta do banheiro estava emperrada, ele decide sair pela janela e caminhar pelo batente do prédio até a janela do banheiro. Toda a construção de aparente periculosidade da cena se baseia na quão fina é a marca de luz que vem das laterais, sobre a qual ele deve se equilibrar para não cair.

Por último, o recurso de pantomima usado no esquete final se torna inusitado por associar ao humor uma pitada de thriller. A pantomima é um gênero da mímica, caracterizado por possuir uma trama e contar uma história mais elaborada do que apenas encenar uma situação pontual. Com esse esquete, em que o performer visita à casa de sua apaixonada e acaba caindo numa armadilha letal, o ator se mostra versátil na arte de construir impressões sensíveis.


---------------------------------------

Diversão e sensibilidade

foto de Núbia Abe
Um dos nomes mais conhecidos da dramaturgia contemporânea nacional, o paranaense Mário Bortolotto, radicado em São Paulo, apresenta uma nova montagem de um de seus primeiros textos.

Por Lucianno Maza
Itajaí

Autor de uma das obras mais coerentes do teatro brasileiro, Mário Bortolotto tem seus textos assumidamente impregnados com a visão de mundo beatnik de autores como Jack Kerouac e, ainda mais do escritor próximo dos beats: Charles Bukowski. Seus personagens são homens que correm a vida sem grandes ambições, atrás apenas de uma boa música, uma boa cerveja e uma boa mulher, não necessariamente nessa ordem. Homens que não se lançam a complexas reflexões da vida, mas vivem de fato a experiência do passar dos dias. 

Em “À Meia-Noite Um Solo de Sax na Minha Cabeça” acompanhamos o crescimento de dois amigos de infância bastante diferentes: Jesse, um inseguro e quase alienado filho de uma família de classe média e Billy, consciente e politizado filho de uma prostituta. De 1950 até a virada do ano de 1983 para 1984, em cenas rápidas, temos os encontros, desencontros e reencontros desses dois homens opostos em suas ideias e realidades sociais, mas unidos por uma inabalável amizade. Com a História do país como pano de fundo, destacando o momento político da ditadura militar, o texto não se torna datado, pois, sabiamente, foca na relação humana, nessa espécie de amor real e possível que é a amizade.

Jovem autor
Escrita pelo autor aos 21 anos de idade, temos a chance de conhecer um jovem Bortolotto começando a maturar influências culturais e encontrar sua própria identidade que marca seu teatro até chegar aos grandes textos como “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet” ou “A Frente Fria que a Chuva Traz”. Visivelmente aprendendo a lidar com elementos da estrutura dramatúrgica, ele já exibe nesse texto de seus primeiros, talento para diálogos fluídos, ora engraçados e ora melancólicos. Há um antagonismo bastante reforçado nas diferenças dos dois, que se revela especialmente na cena política quando os dois amigos, se encontram em lados opostos da campanha eleitoral ao Governo do Rio de Janeiro, e se enfrentam ideologicamente com clichês – que, como todo clichê, são frutos da realidade - sobre a direita e esquerda. São nos momentos onde as diferenças de ambos são representadas com mais sutileza que surgem as melhores cenas, como a hilariante dos bebês, o encontro ébrio no banheiro, o alucinado show, a conversa regada a cerveja gelada e a celebração do ano novo.

‘Os brutos também amam’
Em “À Meia-Noite Um Solo de Sax na Minha Cabeça”, Bortolotto já se mostra também como um dos escritores que melhor consegue transportar para o palco o universo do homem heterossexual - tão difícil de ser reproduzido em cena em suas emoções contidas e desencantadas. Se num primeiro momento algumas pessoas podem se incomodar com o que entendem como machismo, um olhar mais atento e destituído de preconceito perceberá a sensibilidade decantada nesses machos alfas, desvelando os oprimidos sentimentos masculinos. 

Se por um lado, os personagens chamam mulheres de puta - elas sendo ou não -, por outro são homens apaixonados por essas “putas”, que se mantêm casados e felizes ao lado delas (caso de Jesse) ou deslocados e em busca de uma. Da mesma forma, referem-se a homossexuais pejorativamente como veados, mas assumem sem pudores fazer sexo prazeroso com esses “veados” (como Billy), e até ensaiam sem afetações uma relação de “troca-troca”. Assumidamente há o sarro, mas não machismo ou homofobia em suas palavras. Adjetivam como aprenderam, sabem e podem, sem real carga moralizadora.

Em tempos politicamente corretos, a vulgaridade sincera desses personagens pode chocar com sua escrotidão, mas retratam com honestidade homens que, sem sua revolução emocional, criaram seu código social libertário e desenvolveram seu próprio sentido de sensibilidade. E, afinal, a sensibilidade surge de diferentes formas, dentro de vários contextos, e através de atitudes irreconhecíveis.

foto de Núbia Abe
Diversão em cena
Como diretor, Bortolotto não se preocupa a inventividades estéticas, mas sim em materializar da forma mais direta seu texto. Realiza as cenas em ritmo adequado, com marcações que soam despojadas na liberdade que dá aos intérpretes, mas são também funcionais e mesmo bonitas em sua simplicidade, como quando um deles, o mais abonado, senta-se no chão para ouvir o amigo que passa por momento delicado na única cadeira que dispõe ou no final, quando estouram em comemoração ao som do solo do sax de nossas cabeças. 

Sem apelar para virtuosismos, os atores Fábio Esposito e Henrique Stroeter mostram que dominam o palco e o transformam numa espécie de playground para seus talentos. Percebemos que eles, felizmente, se divertem em cena, mas é preciso notar que não há ali apenas fruição. Existe um apuro consciente de um humor físico de alta qualidade, alcançado com o desenvolvimento técnico da interpretação realista refinada em exagero controlado e até mesmo da palhaçaria dos dois atores. Espósito - que acumula experiências profissionais como palhaço - molda irrepreensivelmente a máscara facial e joga com suas posturas. Enquanto isso, Stroeter modula tempos e entonações vocais de forma admirável em chave de atuação.

Quanto à parte técnica, se destaca a pesquisa e simplicidade que atendem perfeitamente a representação das épocas e sua encenação, a começar pelo figurino correto de Henry Solomovici e a ótima iluminação de Bortolotto. A trilha sonora do diretor com músicas marcantes dos anos 1950 aos anos 1980 é outro trunfo do espetáculo. Contribuem também as projeções de Ronaldo Cahin com cenas históricas que localizam a realidade política do mundo e trechos de filmes e videoclipes representativos da cultura produzida ao longo das décadas em que se passa o espetáculo.


-----------------------------------------

Simplesmente um baile

foto de Núbia Abe

Crítica da peça Bailei na curva
Autor: Humberto Giancristofaro

Bailei na curva é um texto do dramaturgo gaúcho Julio Conte, escrito em 1983. Repetidamente, é escolhido pelas escolas de teatro para suas peças de final de curso, pois dispõe de uma boa quantidade de personagem. Esse é caso da montagem apresentada no II Festival de Teatro de Itajaí pelos alunos da Escola Anchieta Arte Cênica. A trama, porém, exige uma dedicação dos atores para que a evolução da peça, demasiadamente longa, não fique maçante. Todas as escolhas para essa realização recorreram às formas simples. Desprovida de cenário, os bancos plástico e os recursos mímicos exigem da imaginação da plateia a mentalização do ambiente onde a cena se passa. Com isso, toda a responsabilidade pela expressividade da peça recai sobre os atores.

Usando a temática política do Brasil na segunda metade do séc. XX, especialmente o golpe militar, os personagens começam por atravessar sua infância na década de 60. Os amigos de uma escola ignoram a animosidade ideológica entre seus pais e só querem saber dos divertimentos da idade. A caracterização dos atores lança mão das inquietudes juvenis para explorar uma atuação caricata. Nessa primeira parte da peça a agilidade de Gabriela (Tatiane Jacobs) fazem com que ela se destaque do grupo, arrebatando risadas da plateia por sua expressividade. Filha de um sindicalista, ela vê seu pai desaparecer e, ao correr da história, também seu irmão. As mudanças que tal experiência invariavelmente causa numa pessoa ficam bem construídas na sua figura dramática e, até sua formatura em medicina, ela sustenta um personagem visivelmente marcado pelo balanço entre suas amarguras e realizações.

Quando a faixa etária dos personagens alcança a adolescência, o apelo à graça da sexualidade toma conta da cena. As idiossincrasias enfrentadas para se conseguir um beijo são um prato cheio para o humor fácil. Contudo, Po’Renato (Adriano Magalhães) consegue alcançar uma expressão engraçada que domina a plateia e a leva ao ápice do riso sem cair no clichê. Mesmo assim, algumas piadas acabaram se perdendo por reações precipitadas dos atores, em geral o ritmo da peça é bem desenhado, começando de forma bem frenética e alcançando um clima mais calmo ao passar das décadas, momento em que os atores aparentam um maior conforto. A pouca idade e experiência de todos os atores não os impediram de serem ousados e, principalmente, de se divertirem em cena, como se estivessem num baile. O vigor e a emoção deles alcançam o público e o carrega para dentro da história.


----------------------------------------

Tragédia urgente de uma realidade sem amor

foto de Núbia Abe

O Grupo Bagaceira de Teatro, do Ceará, volta a Itajaí (eles estiveram na cidade na primeira edição do Festival Brasileiro de Teatro) para apresentar na cidade portuária a realidade da prostituição infantil, tão comum em outros portos do Brasil.

Por Lucianno Maza
Itajaí

Hoje coletivo teatral mais reconhecido da cidade de Fortaleza, no Ceará, o Grupo Bagaceira de Teatro vem consolidando ao longo de seus onze anos de trajetória um repertório eclético que passa pelo drama, a comédia, o teatro experimental e o infantil. É possível dizer que todas essas vertentes se encontram, em menor ou maior grau em “Meire Love - Uma Tragédia Lúdica”.

O texto conta a história de três meninas prostituídas com idade entre onze e treze anos. Jovens sem referências familiares que buscam em seus sonhos a mesma felicidade que elas acreditam ter sido alcançada por outra colega (similar e duplo delas) que fora levada por um cliente estrangeiro. Sem consciência de suas próprias condições, as personagens não são martirizadas, ao contrário, usam-se do instinto de sobrevivência e de artimanhas como o entorpecimento por meio das drogas para suportar e atravessar dias e noites de solidão só compartilhada por outras iguais - amigas na marginalidade compartilhada e rivais nas pequenas disputas do cotidiano.

foto de Núbia Abe
Lúdico, mas nem tanto
A ludicidade esperançosa que possuem descende de certa inocência que insiste em contaminar suas mentes. São prostitutas que brincam de boneca, fãs de música pop abusadas em troca de cerveja. Esperam que um príncipe as salve, mas os príncipes não são mais encantados filhos de reis, mas turistas sexuais, gringos, que com o poder da moeda as tirariam de suas próprias vidas e as levariam para o outro lado do oceano - sem devolvê-las. “Love”, dizem elas, para se referir aos homens grotescos por quem pegam alguma afeição como tentativa de salvação, numa existência que, de fato, não tem nenhum amor.

O espetáculo, estreado em 2006, é um contundente exercício estético e narrativo sobre uma realidade brutal e esmaecida: a prostituição infantil, essa chaga incômoda e ignorada da sociedade brasileira, presente, sobretudo, em cidades turísticas e ou economicamente fragilizadas, como é o caso da região do Nordeste brasileiro, onde o turismo sexual e a consequente exploração de meninas são abundantes pela pobreza do povo e a falta de combate dos poderes governantes.

Trabalho urgente a ser assistido, é pela incorreção da arte que expõe e coloca a realidade contemporânea e evitada pelas pessoas, para ser assistida e pensada por elas. Renegando a politização do discurso, se torna obra de arte e veículo para o debate social.

Tragédia
É preciso não se enganar com o tom inicialmente cômico do texto de Suzy Élida Lins que tira proveito do ritmo da prosódia do sotaque e das gírias locais (que soam engraçadas para o público de outras regiões do país) e de citações populares pertinentes ao universo que retrata. O texto consistente evoca uma reflexão séria por um caminho não maniqueísta e, sim, corrosivamente engraçado em alguns momentos, provocando incômodo na crueza real que apresenta a história sem julgá-la.

A autora domina o linguajar do universo que retrata e trabalha com alguns elementos reconhecíveis da tragédia grega, como a presença do oráculo representado na história por uma mãe de santo e seus búzios que anunciam a desgraça fadada à personagem desterrada. Bem como na morte do amado oculto provocada indiretamente pela heroína sofredora.

Também na estrutura bem construída, Élida parece transformar as três vozes (apresentadas por Meire 1, Meire 2 e Meire 3) em espécie de coro de uma mesma coriféia (a Meire que se foi). De certa forma, as quatro são partes do mesmo todo, fragmentos de um único discurso, uma única história que se repete nelas e em tantas outras personagens reais que perdem suas identidades particulares.

Encenação seca
A direção da autora e de Yuri Yamamoto provoca estranheza que corrobora o estado que a dramaturgia propõe. Dispensando o realismo e a ação dramática convencional, a encenação sofisticada em sua secura, coloca em cena três bancos onde se sentam três homens. São esses atores que, voltados para a plateia, dizem o texto intensamente, inflando com sopros de vida sonhos-plásticos infantis que, resquícios de inocência e imaginação, ao fim, serão estourados, destruídos, perdidos na formação de amadurecimento das personagens. 

O distanciamento com o qual a história é contada pela encenação, de certa forma suaviza a agressão com o impacto emocional da história, o que ajuda a comunica-la para um público mais amplo. No entanto, essa mesma opção realmente provoca intelectualmente pela narração e imageticamente pela imaginação do espectador, tal qual a tragédia grega se valia para falar de ações tão duras e violentas que não poderiam ser mostradas ou vividas em cena, mas contadas com distância solene e menor interação emocional pelos atores.

Potência de atuações
Em cena, Yamamoto, Rafael Martins e Rogério Mesquita dão vida às três vozes-personagens, em irrepreensível trabalho técnico de precisão vocal e contenção física e emotiva. Yamamoto uma figura forte, oriental e nordestina, tem total aproveitamento de sua verborragia, resultando em ótimo trabalho, assim como Martins que, em excelente momento, provoca comoção quando sua personagem revela a perda daquele que para ela é seu grande amor. Mesquita, em interferências um pouco menores, destaca-se pela indigesta estranheza que evoca sua personagem ensandecida.

O trio de atores veste ternos e bustiês femininos organizados pelo diretor, também responsável pelo cenário - um tablado que vira cais para o mar de sonhos (sacos plásticos). A simplicidade objetiva da iluminação de Paula Yemanjá e Rogério Mesquita acentua a dureza e geometria da encenação.


------------------------------------------

Parábola para crianças

Seguindo a tradição de espetáculos simples com bonecos para apresentações em teatros e espaços educativos, a companhia Etc I Tal Artes Cênicas e Manipuladora de Formas da cidade de Itajaí (SC) conta parábola sobre as crianças de nosso tempo.
Por Lucianno Maza
Itajaí

Um menino trata com descaso seus brinquedos enquanto passa seu tempo voltado para a televisão e o videogame. Em um sonho, uma série de encontros comicamente assustadores com os brinquedos rejeitados lhe faz tomar consciência de que deve gostar e cuidar deles. A história é contada pela companhia Etc I Tal Artes Cênicas e Manipuladora de Formas da cidade de Itajaí. 

Moralizadora, como toda parábola, tal ideia já pôde ser vista em outras obras infantis e tem como missão conscientizar as crianças de nosso tempo sobre os brinquedos e o brincar, exercitando a interação e convivência com amigos, outras pessoas e objetos não eletrônicos. A história alegoricamente ajuda a perpetrar a ideia de cuidado em geral, não apenas com suas coisas, mas também com si próprio e com os outros.

Coelho louco e homem sem cabeça
Ligeiro, o texto de “As Incríveis Histórias de Joe Em: Coragem Pra Quem Tem Medo” - criado pela companhia - não possui falas e é apoiado na conhecida trilha-sonora instrumental composta pelo francês Yann Tiersen para o filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” para criar o clima onírico. 

Divertidas em sua tensão são as passagens com um enlouquecido coelho (momento que exercita tempo e humor) e a cena com o homem sem cabeça. Primeiro assustado com aquele corpo, o menino acaba aceitando o diferente e se afeiçoando ao que seria um novo amiguinho para, em seguida, ser surpreendido pela traição do ser que lhe rouba a cabeça. No final, entende-se que aquela passagem de comedido terror é capitaneada por um boneco que teve sua cabeça arrancada pelo menino - é comum crianças deceparem seus brinquedos.

Para além dos limites
O mais interessante na direção de Cidval Batista Jr. é a expansão da cena para além da pequena caixa do teatro de manipulação. Quando os bonecos e manipuladores ultrapassam esse limite cênico pré-estabelecido, rompem com a ilusão teatral e tentativa de estabelecer perfeita realidade paralela, o que domina parte considerável dos espetáculos infantis. Tal possibilidade poderia ser ainda mais explorada, como na cena onde o boneco brinca de bola com os atores.

Dentre recursos conhecidos como fantoches, bonecos e meio-bonecos, são bonitas as passagens com o jogo de iluminação e sombras, quando o personagem do menino cai no buraco e quando encontra com o coelho.
O elenco formado pelo diretor e Flaviano Koch e Alexandra Ferreira que compõem com carisma os momentos onde surgem como atores interagindo com seus bonecos e esforço enquanto manipuladores. A iluminação e figurinos de Batista Jr. e cenografia deste com Max Reinert são bastante simples, mas funcionam para o transporte e apresentação em locais diversos. Não creditados, os simpáticos bonecos e objetos que surgem em cena mereciam ter confecção mais esmerada.


------------------------------------------

Sonhos de dragão
foto de Núbia Abe
Crítica da peça As incríveis histórias de Joe em: coragem para quem tem medo.
Autor: Humberto Giancristofaro

Quando o mundo onírico de uma criança ganha a liberdade, seu potencial criativo aflora e contagia tudo ao seu redor. É isso que a Etc i Tal Artes Cênicas e Manipuladora de Formas torna visível com a montagem de As incríveis histórias de Joe em: coragem para quem tem medo. Trata-se de uma apresentação de teatro de bonecos que explora o poder regenerador de acompanhar a jornada de um herói.

Diante de uma pesada mão repressiva que o impede de prolongar os prazeres juvenis, Joe mergulha na imensidão de um sono profundo. O elenco de bonequeiros (Flaviano Koch, Alexandra Ferreira, Cidival Batista), embalados por uma trilha de Yann Tiersen (Amelie Poulain), precisam um movimento corporal ao boneco que o anima puerilmente. É essa expressividade de espuma que acondiciona a percepção da plateia e a transporta para o mundo subterrâneo dos sonhos. Nessa região escura da consciência do garoto é que o seu embate acontece. Os medos e desventuras começam por desafiá-lo; com cada brinquedo procurando a revanche do tratamento que receberam pela criança.

O público infantil, levado pelo tom das brincadeiras, acompanha os passos desse pequeno grande herói. Sem demagogismos a trama elucida a importância do objeto brinquedo. Afinal, este é um elemento que auxilia a consolidação da personalidade na infância. Com a banalização do consumo em massa, porém, os brinquedos passaram a ter seu valor diminuído. Perder a cabeça de um, partir ao meio o outro, não é um problema para a criança – ações que fomentam um comportamento de descaso. Nessa história, Joe percebe que deve ter mais atenção com seus brinquedos, dando-lhes um valor que pode transformar o mais simples deles numa aventura fantástica como a de um passeio aéreo montado num Dragão.


----------------------------------------------

Manipulação, talvez.

foto de Núbia Abe
Critica da peça A vida como ela é... da Cia Teatro Sim... Por Que Não?!!!
Autor: Humberto Giancristofaro

A adaptação e direção de Luís Artur Nunes para montagem da peça A vida como ela é... pela Cia. Teatro Sim... Por Que Não?!!! põe em cena cinco crônicas do estilo polêmico e saboroso de Nelson Rodrigues. A ideia fundamental que esse espetáculo tráz é a dos enleios da manipulação. Este tema não fica restrito ao texto, é trabalhado na concepção da peça e presentificado na manipulação dos jogos de cena. Ressaltado pela impostação e gesticulação dos atores, esta natureza forjadora das relações humanas se mostra cada vez mais ridícula, divertindo, mas também tocando a plateia num ponto que incomoda – as mentiras sobre as quais se constrói os laços sociais. Esse “dedo na ferida” que arranca risos do público (alguns de nervoso) denota a atualidade da peça.

O dispositivo de sublinhar as artimanhas das afinidades começa suavemente com Uma senhora honesta, na qual as personagens Luci e Valverde posam nos frame-chaves da narrativa, enquanto os demais atores contam a história e os diálogos desse casal. Uma conexão privada, entre o que é contado e como eles devem posar, atiça a pergunta de qual é a liberdade da personagem e o quão subserviente ele deve ser ao que esta sendo dito de/por ele. Causticamente, a resposta vem em sequência, na Noiva para sempre, onde as personagens são atores-manequins e atores-bonecos. Toda a possibilidade de expressão deve ser montada por seus bonequeiros, sacando-lhes qualquer autonomia. A identificação com os movimentos denuncia uma índole de clichês em nós mesmos, de como cada expressão humana é marcadamente reproduzível e pode ser manipulada. O alto nível de manipulação na técnica utilizada para esse momento da peça condiz com a história: A escolha entre dois amores, na qual uma das pretendentes, mesmo não tendo sido escolhida, preserva o poder de manipular o casal recém formado, impondo-lhes a máxima: “ – Se não é meu, não é de mais ninguém”.

No entanto, na Noiva da morte, a narrativa aponta por si só para a periculosidade das atitudes manipuladoras, que podem levar Alipinho, um garoto hipermimado, à escolha de findar seus dias. Por mais que viva-se nos tempos do “toma lá, dá cá”, o limite dessa atitude deve modular-se para não levar à falência nenhum de seus elementos. De que adiantaria ser o maior manipulador de um mundo desabitado? Mesmo com toda a palavra proferida sendo usada pelo indivíduo para extrair uma atitude complacente do outro, há que se preservar uma autonomia. Quando, em Doente, cada ator tem por trás de si outro ator, manipulando seus movimentos e soprando-lhes o texto, esse jogo cênico afirma o maniqueísmo incondicional. Resguarda, porém, o instante de decisão que cada ator pode tomar para interpretar essa “cola” do texto, eles podem dar mais ou menos intensidade à fala para afirmar sua individualidade e romper com a cadeia de determinismo.

No Grande dia de Otacílio e Odete, contudo, é onde se percebe, não uma inclinação para o livre-arbítrio, mas à coexistência. A cena começa com todos os atores formando um trenzinho, dizendo o texto todos juntos. A rede causal é infinita, não se manipula sem estar sendo manipulado. Importante é tomar consciência do porque desse comportamento e até que ponto a interdependência é sine qua non. Assim, é com essa história que termina o espetáculo, nela fica aparente as rubricas de expressão, verbalizadas pelos atores, relembrando que o trato dos costumes é uma convenção. Todo acordo deve ser lembrado como tal para não transformar-se em doutrina. Como acontece ao final que, mesmo diante da quebra do acordo de monogamia, Otacílio releva a ação de Odete e proclama a perenidade do amor – que seja apenas enquanto dure.


-------------------------------------

A vida como ela era...

foto de Núbia Abe


Luiz Arthur Nunes leva novamente as crônicas de “A Vida Como Ela É” de Nelson Rodrigues ao palco, agora com a companhia Teatro Sim... Por Que Não?!! de Florianópolis. 

Por Lucianno Maza
Itajaí

No Rio de Janeiro dos anos 1950, Nelson Rodrigues, autor máximo da dramaturgia moderna brasileira e também jornalista, publicou com grande sucesso no jornal A Última Hora uma série de crônicas que deflagrava com tintas exageradas a sociedade da época através de traições e desejos apaixonados, oprimidos pela hipocrisia.

Cruzamento de estilos
Revolucionários em si por mesclarem o caráter realista da observação cotidiana de uma crônica com as tramas de um conto e personagens bem delineados que parecem pertencer a um esquete dramático, tais textos renegavam o ensaio reflexivo humano comum aos cronistas para narrar histórias forjadas com a imaginação de um autor ficcionista, sem abrir mão do afinco jornalístico em sua comunicação - o que marca também a obra dramática posterior do dramaturgo. 

Dessa forma, Nelson Rodrigues traiu o formato convencional da crônica para cruzar diferentes estilos literários e, sob esse entroncamento, estabelecer seu universo altamente identificável com tipos decalcados com exagero da realidade de uma época.

Possivelmente, são essas crônicas que soam também como contos e esquetes, sobretudo as reunidas sob a epígrafe de “A Vida Como Ela É”, senão a melhor, a parte mais bem desenvolvida e representativa da obra desse escritor de múltiplos formatos, justamente por trazer elementos de cada um dos por ele experimentado (crônica, conto, dramaturgia).

Montagem inesquecível
Já nos anos 1990, também no Rio de Janeiro, o diretor Luiz Arthur Nunes, com seu Núcleo Carioca de Teatro, transpôs pela primeira vez esse conteúdo rodrigueano para os palcos, inaugurando uma vertente cênica com bastante frescor na época.

O diretor respeitara a integridade do texto, mantendo a força narrativa dos originais e acentuando o humor do exagero pseudorealista das histórias. Inovara no despojamento formal e uso de recursos cênicos diferenciados como máscaras, sombras e manipulações, além de certa experimentação vocal - como e quem imitia o texto - e física - desenho de movimentos. Resultando em espetáculo bastante original.

Luiz Arthur Nunes traia assim as convenções do teatro de então ao passo que, ironicamente, brincando com os clichês rodrigueanos e as diferentes claves da linguagem teatral, revelava a teatralidade da obra não dramática de Nelson Rodrigues, abrindo caminho para outras encenações desse segmento do autor no Rio de Janeiro, cujo exemplo melhor sucedido foi “Decote” texto de Daniel Herz da Cia. Atores de Laura inspirado em outros textos do mesmo gênero do autor.

Nova velha encenação
Vinte anos mais tarde, temos em 2011, a companhia Teatro Sim... Por Que Não?!!! de Florianópolis sob direção de Luiz Arthur Nunes se debruçando sobre o mesmo apanhado dos textos de “A Vida Como Ela É”.

Inevitavelmente, ecos do espetáculo carioca se fazem presentes na montagem catarinense e muitos dos recursos utilizados pelo diretor na ocasião ressurgem. Ainda que inconscientemente, o atual espetáculo é uma espécie de versão de reprodução do primeiro.

É verdade que, se analisado isoladamente, esse novo espetáculo não detém o mesmo frescor e sua inventividade já fora visto no original e outros trabalhos seguintes. No entanto, se partirmos da ideia de efemeridade do teatro como arte que se dá unicamente no momento presente e cujos registros fotográficos e audiovisuais o transformam em outras obras de experiência radicalmente diferente da teatral, essa nova encenação de “A Vida Como Ela É”, ao evocar um trabalho de importância histórica para Nelson Rodrigues e Luiz Arthur Nunes, é uma oportunidade documental.

Correção técnica
Nessa nova encenação, Luiz Arthur Nunes mantém suas características não apenas da primeira versão de “A Vida Como Ela É”, como de outros espetáculos de sua trajetória onde a ação narrativa é marcantes, como aqueles em que partiu das obras de Machado de Assis e Clarice Lispector. Todas as qualidades já citadas se apresentam novamente, mas infelizmente com menor vigor na execução. Alguns momentos também são burocratizados, como as dispersões de cada cena.

Os atores da companhia Teatro Sim... Por Que Não?!!! se equilibram enquanto conjunto. Berna Sant’Anna, Leon de Paula, Mariana Cândido, Nazareno Pereira, Sérgio P. Cândido e Valdir Silva prescindem de maior precisão, mas mantêm correção linear em seus vários personagens. Quem se destaca é a atriz Ana Paula Possap que demonstra intensidade em suas participações, seja na narração do primeiro esquete ou nas personagens dos dois últimos.

Na equipe técnica, a cenografia genérica de Fernando Marés ganha nas silhuetas de sombra desenvolvidas por Cesar Rossi que criam uma divertida referência visual de cada passagem, iluminadas de forma coerente por Luis Carlos Nem. Os figurinos de Luiz Fernando Pereira (LF) são simples e funcionais, com complemento das interessantes máscaras de látex de Sérgio Tastaldi utilizadas em um dos esquetes. Excelente é a trilha sonora do diretor, com uma irresistível pesquisa das músicas sentimentais dos anos 1950.

foto de Núbia Abe